terça-feira, 30 de julho de 2019

O riso da minha mãe


Os livros nascem e crescem connosco e, assim, somos o próprio livro. Acredito que têm inscrito o nosso ADN.  
A propósito de um texto meu sobre a apetitosa bola doce mirandesa, um poeta brasileiro, que muito aprecio, Pedro Luso, desafiou-me a escrever sobre meus livros. É curioso que a minha primeira publicação acontece, precisamente, numa antologia luso-brasileira, através da Editora Sapere, no Rio de Janeiro. A seguir participei em várias. Entendo ser a poesia uma forma privilegiada de comunicar e só cumprirá esse desiderato se for lida, dita ou cantada. Algo que cativa e provoca. Nada acontece por acaso e senti o desafio como possibilidade de autoanálise. Agrada-me esta ideia de diálogo comigo mesma. Bem sei que Pedro Luso queria saber das experiências que vivi ou dos sentimentos que experimentei ao publicar livros – apenas dois atá à data. Mas agarrei a ideia como caminho mais alargado.
De cariz autobiográfico é o meu primeiro livro. Nascido, à beira-rio, cresceu em regaços de arribas e em cordões umbilicais que se materializaram pela vida fora. Lembro-me de voar enquanto dormia. É a ideia mais clara e mais antiga que tenho, acrescida das primeiras brincadeiras de rua, das descobertas no quintal da avó, dos primeiros questionamentos, das primeiras afeições...
 Há dias encontrei uma amiga com a qual cresci no colégio da Imaculada Conceição, em Lamego. Estávamos num funeral e não conseguíamos parar de partilhar abraços. Nasciam na espontaneidade e na alegria do reencontro. Não há amizades comparáveis àquelas que construímos enquanto crescíamos.
Só escrevemos pela necessidade de guardarmos as memórias que nos cresceram e outras que dizem da busca e da perplexidade, do desassossego… Escrever é, realmente, um ato de amor e de libertação. Como se as palavras saíssem das pedras rasteiras, acariciadas por águas ribeirinhas e outras rasgassem os céus, como agulhas de catedrais.
Chamei OUSADIA ao meu primeiro livro, por corresponder a um rasgo de alma e por ter tido a coragem de submeter a concurso meus íntimos escritos.
É certo que as palavras se intrometem, se baralham e digladiam. São, naturalmente, inquietas, parecem querer dar testemunho da vida que as faz ferver. Têm urgência de entrar em cena e saem de todos os lugares para construírem um corpo único, versátil e universal. Hesitantes, bailarinas, sofridas ou estrelas da manhã expandem-se de modo a imprimirem uma dinâmica sem sinais conclusivos. Logo outras se insinuam, borbulham e se fazem ao largo …E eu tremo, mas não vacilo. Escrevo com a força do olhar e do sorriso que herdei. Força que pressinto como se as palavras se beijassem nos bicos das aves do meu vale, rebentassem da pele dos frutos maduros ou escorressem de lábios sedentos, no pino do verão. Nelas verto perfume, paladar e emoção. Apraz-me citar aqui Conceição Lima: Juntemos fragas, giestas, torgas, rosmaninho, cardos e alecrim. Com isso, Teresa Almeida Subtil constrói o seu ninho. Depois, aconchegada, olha as arribas, o Douro e o Alto. Ensaia o voo. Sobe. Atinge as alturas das águias. Do alto, olha, perscruta, escuta, ouve a terra, o chão, o SEU CHÃO, eterno apelo. Faz do voo, planado ou a pique o seu constante desafio! Em mirandês, explica a cartografia dos seus refúgios – TERRA E CÉU.

Sou raiana, de janelas escancaradas, sem fronteiras, sem preconceitos e, ainda que os olhos piquem afetados pelo cansaço, as palavras não ousam adormecer. E acrescentam vida à própria vida, melodia que recolhi nos passos que dei, nos livros que li e nas pessoas com estrelas no olhar. Poderão ser ribeiros que não nadei, águas que não bebi, mas amei… Elas navegam em desejo e ganham vida própria. E eu quero-as soltas … por aí …

Teresa Almeida Subtil

(continua)



7 comentários:

  1. Adorei ler-te e saber dos teus sucessos que tenho de saborear...
    Também adoro este lindíssimo concerto.

    Convido-te a participar no meu blogue de uma pequena celebração
    neste Dia Internacional da Amizade.

    O meu grande abraço, Amiga.
    ~~~~~

    ResponderEliminar
  2. Querida Teresa

    Um verdadeiro hino à Vida, ao bem-querer a tudo o que a compõe, à terra, às pessoas amadas: é como eu leio esse seu texto, ao qual transmite a doçura do texto anterior, e muito mais. Com efeito, vemo-la aqui, generosamente, na explanação do processo de criação das suas obras, nos seus desejos e ânsias, nas suas perplexidades, na sua inteireza plena.

    Minha amiga, voltarei para ler e apreciar a continuação deste belo testemunho, inédito nesta sua forma pessoalíssima e apaixonada. O título, "O Riso da minha Mãe", sugestivo e belo.

    Também, deixo-lhe aqui a expressão da minha gratidão pelo carinho que tem dedicado ao meu "Xaile de Seda", neste momento em pausa, mas pensando regressar em breve.

    Beijinhos
    Olinda

    ResponderEliminar
  3. Eh, eh, mirandesa de uma cana!
    exemplar teu texto, Teresa, que de ti e além de ti, tanto fala!

    quem se afirma assim, em altivez desassombrada, telúrica e solar, fecunda e sábia ("escrever é, realmente, um ato de amor e de libertação"), porventura, trémula, mas não temerosa, sacerdotiza e devota da palavra (as palavras têm urgência de entrar em cena para construírem um corpo único ...") transporta consigo uma densidade e um destino que irrompem imparáveis, como as caudalosas águas do Douro, a rasgar horizontes na sua afirmação universal ("sou raiana, de janelas escancaradas, sem fronteiras, sem preconceitos...")

    razão tem Conceição Lima quando de ti diz, em belas palavras, o louvor do chão - do teu Chão - como eterno apelo e o voo como constante desafio e, em mirandês. a cartografia de teus refúgios: "TERRA E CÉU".

    muitos parabéns, minha amiga.
    um privilégio a tua amizade.

    beijos

    ResponderEliminar
  4. Que bela introspecção
    Buscando o teor que tem
    Tua alma, como quem
    Às cegas busca o que são,

    Com plena iluminação,
    Invisíveis, sendo sem
    Substância. E também
    Conhecer seria em vão.

    O que há como essência
    Anímica, nem a ciência
    Conhece o transcendente!

    Não importa a aparência
    E nem mesmo a transcendência,
    Mas o ser é alma e é mente!

    Grande abraço! Laerte.

    ResponderEliminar
  5. Gostei do texto que escreveste em resposta ao desafio do Pedro Luso. E fiquei impressionado com o que a Conceição Lima disse acerca da tua escrita, porque é exactamente isso que eu penso, embora nunca fosse capaz de o dizer. Ou, então, "Como se as palavras saíssem das pedras rasteiras, acariciadas por águas ribeirinhas e outras rasgassem os céus, como agulhas de catedrais".
    Querida amiga Teresa, tem um bom fim de semana.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  6. Olá, Teresa!
    Li com atenção que merece este seu texto sobre como você escreveu os seus livros, pois sei ser mais difícil falar sobre o que escrevemos do que a própria escrita. Penso ser mais natural para o escritor escrever uma crônica, um conto ou um poema do que falar sobre a obra que criou. Talvez essa dificuldade se dê por respeito à sua criação, por um sentimento muito próprio dos escritores, qual seja, a discrição, já que para ele é importante que se destaque a obra, não o seu criador. Por isso, Teresa, vejo que você venceu essa barreira e falou de seus livros como se fala de filhos, do que gostei muito. Parabéns, poetisa!
    Um ótimo final de semana, querida amiga Teresa.
    Beijo.
    Pedro

    ResponderEliminar
  7. Fiquei absolutamente rendida, a este seu texto, Teresa, que expressa o seu amor pela escrita... e o espírito com que iniciou a sua publicação literária... correspondendo ao desafio do Pedro Luso!...
    Para ler... e reler!... Um beijinho grande! E votos de continuação de muito sucesso, para as suas publicações!
    Ana

    ResponderEliminar