Ao despertar qualquer varanda é palco de contemplação, um
convite à evasão dos sentidos: é o apelo da natureza, é a emoção que nos
pendura sobre o verde talhado a várias altitudes, é a neblina matinal que nos
toca num arrepio de madrugada.
Não conseguimos ver o rio porque as árvores se lhe
entregam e entrelaçam como se fora um romance de encantamentos. Não conseguimos
vê-lo, mas ouvimos o seu palpitar impetuoso, o seu cantarolar entre os seixos
que vai arredondando em massagens de corrente e vai fazendo caminho na direção
de um destino infinito que lhe pertence. Talvez seja esta noção de movimento
perene que nos prende ao momento, sabendo que a vida se vai fazendo de pequenos
passos e, se não soubermos aproveitá-los, ficaremos com as mãos cheias de coisa
nenhuma.
Pressinto um toque romântico que me eriça a pele ao
reescrever a poesia do olhar, agora maduro, mas que - aqui - já foi tão verde
como as folhas que teimam em manter a tonalidade primaveril ou como os veados
que dominam graciosamente a paisagem e desfrutam de total liberdade. Passaram
por mim tantas estações, alguns apeadeiros dissonantes, mas é gratificante
redescobrir este bosque imaculado. E ao correr da pena deixo cair algumas gotas
de orvalho matinal, este pulsar em que me sinto e confundo, como se fosse um
pássaro que se enche de audácia e esvoaça para o sítio onde se sente feliz.
As palavras são, assim, esse poleiro de assombros e
evasões. É verdade que tropeçamos em estados de alma que nos dizem que somos
muito mais que nós mesmos, que não cabemos no sítio onde estamos e, por isso, voamos - nas palavras.
Embrenhados na serra, descobrimos fontes dispersas,
pausas revigorantes. Há quem nunca esqueça as sedes da Guiné e vá abraçá-las e
desfrutar do seio líquido da terra (a guerra gritará sempre na alma de quem a
viveu).
Atrevo-me a dizer que experimentamos uma subtil
intimidade com a natureza no rumorejar que nos acompanha, eco de fios de água a
serpentear por ali. Parecem tão puros como os sentimentos. Depois, nos meandros
da objetiva, surgem azuis intensos, verdadeira alquimia de vida e de amor.
Na serra do Gerês há partes selvagens e intocáveis. Ali a
natureza é ela mesma em toda a sua biodiversidade. Sabemos que o parque
nacional Peneda Gerês é considerado pela UNESCO como Recurso Mundial da
Biosfera.
De facto, é grande a variedade e a riqueza vegetal devido
às variações de altitude e às influências oceânica e continental. A cabra, o
cavalo e a vaca surgem soltos como companheiros de jornada.
E, de repente, o Outono abre portas, tão lentamente, como
se os deuses sussurrassem baixinho um poema escrito em requebros de beleza, um
poema que é terra, que é alma, que é vida.
No Gerês experimentamos, também, um sentido duro de
existir, ao vacilarmos nas curvas onde o fragaredo se mostra na iminência de
ruir. As penhas parecem empurradas, em desequilíbrio permanente, como um país a
doer. E dizem que os demónios vociferam em cascatas alucinantes. Debruço-me nos
miradouros e deixo-me enfeitiçar. Olho e ouço cantares altivos de montanha e
esculturas cinzeladas de espanto.
Por aqui se respira e se entende a presença e a alma
poética de Torga:
“Serra!
Há qualquer coisa que em mim se acalma,
Qualquer coisa profunda e dolorida
Traída, Feita de Terra e alma.
Qualquer coisa profunda e dolorida
Traída, Feita de Terra e alma.
Uma paz de falcão
na sua altura
A medir fronteiras!
- Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bico a picar estrelas verdadeiras.”
A medir fronteiras!
- Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bico a picar estrelas verdadeiras.”
Parto com fome de voltar, para saborear a magia do
amanhecer no Gerês, este desejo insubmisso de acordar em lençóis de neblina, em
beijos humedecidos, nesta sensualidade a derramar-se à flor da pele. Parto com
uma agradável sensação de leveza, sentindo em pleno o ser físico e espiritual
que somos, em qualquer momento e em qualquer lugar.
Teresa Almeida Subtil
(Texto publicado na BIRD MAGAZINE, em 21/10/2015)
Teresa Almeida Subtil
(Texto publicado na BIRD MAGAZINE, em 21/10/2015)
A comunhão com a Natureza bem sentida, bem narrada, despertando partes adormecidas de nós...
ResponderEliminarUm excelente texto, Teresa, parabéns!
Um beijinho :)
Olá Teresa (que saudade!),
ResponderEliminarUm texto belíssimo, que nos encanta a cada parágrafo,
com a luminosidade, profundidade e poesia que inundam
a nossa alma nesta transcendência, nesta unidade e
nesta renovação com a natureza descrita por ti.
Adorei este trecho do poema de Torga:
"Serra!
Há qualquer coisa em mim se acalma,
Qualquer coisa profunda e dolorida
Traída, feita de terra e alma."
Texto brilhante e acompanhado desta foto da
poetisa linda e luminosa...
Muito grata com a partilha!!
Beijinhos saudosos.
De uma varanda se sente, pela manhã o acordar do mundo. E no Gerês deverá ser, como tão bem descreves, uma experiência única e emocionante. Feita de múltiplos verdes na neblina matinal, com o murmúrio de um rio escondido pela vegetação. Por isso transbordaste nas palavras como um pássaro a sobrevoar a paisagem que te desperta tão poeticamente o olhar.
ResponderEliminarAh quem me dera ir ao Gerês!
Um texto belíssimo! Parabéns.
Gostei também do Torga e da tua foto!
Bom resto de domingo, Teresa.
xx
Belo casamento de viagens
ResponderEliminarpalavras em carne viva
Bj
Esse contacto com a natureza é tão fascinante !! Como fascinante é a tua escrita e a forma como descreves esses lugares , onde o mundo parece pintado de verde, montanhas íngremes,a força da água a cair das cascatas fazem do Gerês, talvez, um doslugares mais belos do nosso País....
ResponderEliminarBeijinhos Teresa
Agora me conta : como não ser vestida de Natureza se sou parte dessa terra bendita !?
ResponderEliminarMaravilhoso texto! Um hino !
Abraço
Não é roteiro, não é crónica de viagem, não é um relato de uma vivência... É um pouco de tudo isto, sim, mas vai para lá da estreiteza desta catalogação: é a alma a dar conta do deslumbramento sentido...
ResponderEliminarMuito bom!
Bjo :) :)